Nova lei capixaba sobre temas de gênero nas escolas é criticada por especialistas e vista como retrocesso
Aprovada pela Assembleia Legislativa e promulgada após omissão do governador, norma deve ser judicializada por inconstitucionalidade
A recente promulgação da Lei nº 12.479/2025, no Espírito Santo, reacendeu o debate sobre censura no ambiente escolar e mobilizou especialistas, educadores e defensores dos direitos humanos. A norma obriga escolas públicas e privadas a comunicarem previamente às famílias sobre atividades pedagógicas que envolvam identidade de gênero, orientação sexual e diversidade. Pais e responsáveis poderão vetar, por escrito, a participação dos filhos — medida que, segundo especialistas, representa um retrocesso pedagógico e jurídico.
A lei foi publicada no Diário Oficial da Assembleia Legislativa na última quinta-feira (17), após o governador Renato Casagrande (PSB) não sancionar nem vetar a proposta dentro do prazo legal. A autoria é do deputado estadual Alcântaro Filho (Republicanos), que alega que temas relacionados à sexualidade têm caráter “doutrinário” e ameaçam valores familiares — justificativa fortemente contestada por pesquisadores da área da educação e da sociologia.
Mesmo com parecer da Procuradoria da própria Assembleia apontando inconstitucionalidade formal e material, o texto passou com maioria simples. Agora, a Secretaria de Estado da Educação (Sedu), embora contrária à proposta, informou que irá regulamentar o cumprimento da norma na rede estadual, em cumprimento ao princípio da legalidade administrativa.
Para Erineusa Duarte, coordenadora do Núcleo Interinstitucional de Pesquisa em Gênero e Sexualidades da Ufes (Nupeges), a legislação é mais uma manifestação da chamada “guerra cultural” impulsionada por setores conservadores. “Essa lei não se sustenta juridicamente. O Supremo Tribunal Federal já consolidou o entendimento de que é dever do Estado combater a discriminação de gênero nas escolas. Essa tentativa de censura é uma afronta à Constituição e serve mais para gerar pânico moral do que para proteger crianças”, afirma.
Segundo ela, o conteúdo vetado pela nova legislação está previsto em diretrizes nacionais como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e no próprio Currículo do Espírito Santo, sob o eixo dos temas transversais voltados à formação cidadã. “Ao contrário do que afirmam os defensores dessa lei, falar sobre diversidade não é doutrinação. Doutrinação é o silêncio forçado”, completa a pesquisadora.
Reedição do discurso do “Escola Sem Partido”
A nova legislação é considerada uma reedição da proposta “Escola Sem Partido”, já arquivada em diversos estados brasileiros por inconstitucionalidade. Em 2017, um projeto com o mesmo teor, chamado “Escola Livre”, foi arquivado no Espírito Santo após pressão do sindicato dos professores e de núcleos acadêmicos da Ufes. Agora, a medida ressurge com roupagem similar, mas ainda sem respaldo legal.
Além de levantar dúvidas sobre a constitucionalidade, a medida levanta preocupações práticas: como as escolas deverão organizar suas atividades pedagógicas? Como os professores poderão abordar questões que envolvem direitos humanos, igualdade e cidadania sem incorrer em riscos de sanções? “É uma tentativa clara de intimidar o corpo docente e desfigurar a função social da escola”, avalia Erineusa.
Uso político e eleitoral da pauta
Para pesquisadores, a aprovação de leis sabidamente inconstitucionais serve a um propósito político: alimentar a base eleitoral conservadora e manter temas morais no centro do debate público. “Essas leis são feitas para cair no Judiciário, mas até lá já geraram manchetes, likes e votos”, comenta um especialista ouvido pela reportagem.
A promulgação da lei estadual também coincide com iniciativas similares em municípios como Guarapari e Colatina, onde parlamentares locais tentam emplacar legislações com o mesmo teor, mesmo após decisões do Supremo Tribunal Federal reafirmando que a União detém competência exclusiva para legislar sobre diretrizes curriculares da educação nacional.
No caso de Guarapari, o Ministério Público Estadual (MPES) já contestou a norma e tenta mediar uma solução extrajudicial por meio do Núcleo Permanente de Incentivo à Autocomposição (Nupa), enquanto em Colatina, o parecer técnico da Câmara já apontou inconstitucionalidade.

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