Senado pode ter palavra final na reforma do novo ensino médio
O futuro de quase 8 milhões de alunos atualmente matriculados no ensino médio está em discussão no Senado. A Comissão de Educação e Cultura (CE) começa a analisar o projeto de lei para a reforma do novo ensino médio (PL 5.230/2023), aprovado em março pela Câmara dos Deputados. Depois de passar pela CE, o texto seguirá para votação no Plenário.
Uma das principais mudanças trazidas pelo projeto é a recomposição da carga horária da formação geral básica, que vinha sendo reivindicada por especialistas e movimentos ligados à educação. A carga mínima na formação geral, que na regra atual é de 1,8 mil horas, é alterada pela proposta para 2,4 mil horas, somados os três anos.
O projeto, elaborado pelo Executivo, é uma alternativa apresentada pelo governo para substituir o novo ensino médio (NEM). A reforma que levou ao NEM foi definida em 2017, durante o governo Michel Temer, por meio de medida provisória, e as novas regras só começaram a ser aplicadas em 2022 para parte dos alunos. Desde a aprovação, as mudanças vêm sendo criticadas pela comunidade escolar e por entidades da área, o que levou o Ministério da Educação a suspender a aplicação do modelo em 2023, para revisão das normas.
A reforma (Lei 13.415, de 2017) alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB — Lei 9.394, de 1996) e, entre outros pontos, determinou que disciplinas tradicionais passassem a ser agrupadas em áreas do conhecimento (linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas). Cada estudante também passou a montar a sua própria grade de disciplinas, escolhendo os chamados itinerários formativos, para se aprofundar em uma das áreas. Essa divisão por áreas do conhecimento, que havia sido mudada no projeto do Executivo, foi reincorporada ao texto na Câmara.
A proposta determina que os sistemas de ensino deverão garantir que todas as escolas de ensino médio ofertem no mínimo dois itinerários formativos. A montagem dos itinerários dependerá de diretrizes nacionais a serem definidas pelo Ministério da Educação com os sistemas estaduais, e as escolas deverão criar programas que orientem os alunos no processo de escolha.
A dificuldade na implementação dos itinerários, especialmente no ensino público, foi um dos principais pontos criticados no NEM. A falta de estrutura e de recursos das escolas, a fragmentação dos conteúdos e a oferta restrita de itinerários foram apontadas como barreiras que levariam ao agravamento da desigualdade entre rede pública e privada.
Mudanças
O projeto enviado pelo governo federal ao Congresso foi aprovado pela Câmara dos Deputados na forma de um substitutivo (texto alternativo) do deputado Mendonça Filho (União-PE), que, na época da primeira reforma, era ministro da Educação.
O substitutivo trouxe outras alterações com relação ao texto proposto pelo Executivo, além da divisão em áreas de conhecimento. Uma delas é a retirada da obrigatoriedade do ensino de língua espanhola. Pelo texto, o espanhol, como disciplina não obrigatória, poderá ser ofertado como outra língua estrangeira preferencial no currículo, de acordo com a disponibilidade dos sistemas de ensino. Para comunidades indígenas, o ensino médio poderá ser ministrado em suas línguas maternas.
No texto aprovado, também foram incluídas emendas para garantir benefícios a estudantes do ensino médio de escolas comunitárias que atuam no âmbito da educação do campo. Assim como os alunos de baixa renda que cursaram todo o ensino médio em escola pública, eles poderão ter acesso aos benefícios de bolsa integral no ProUni para cursar o ensino superior em faculdades privadas e à cota de 50% das vagas em instituições federais de educação superior. Poderão contar ainda com a poupança do ensino médio (programa Pé-de-Meia, criado pelo governo federal em janeiro de 2024).
Para críticos das regras do NEM, os alunos de escolas públicas, que são maioria, são justamente os que mais perdem com as mudanças feitas em 2017. Entidades ligadas à educação apontam risco de um aprofundamento ainda maior das desigualdades entre estudantes das redes pública e privada. No novo modelo, segundo especialistas, os jovens de escolas públicas cursam itinerários de qualificação profissional de baixa complexidade e ofertados precariamente, já que muitas escolas não têm infraestrutura adequada.
De acordo com o Ministério da Educação, os estudantes, principais interessados nas mudanças, foram ouvidos no processo de elaboração do novo projeto. Um dos subsídios foi o resultado de uma consulta pública feita em 2023. Essa consulta incluiu audiências públicas, oficinas de trabalho e reuniões com entidades, seminários e consultas on-line com estudantes, professores e gestores escolares sobre a experiência de implementação do ensino médio no país.
O texto aprovado prevê a formulação das novas diretrizes nacionais para o aprofundamento das áreas de conhecimento até o fim de 2024 e a aplicação de todas as regras pelas escolas a partir de 2025. Para os alunos que estiverem cursando o ensino médio na data de publicação da futura lei, haverá uma transição para as novas regras.
Atuação do Senado
No Senado, o trabalho de reformular as regras do novo ensino médio começou muito antes da chegada do projeto aprovado na Câmara. Ao longo de todo o ano de 2023, a Subcomissão Temporária para Debater e Avaliar o Ensino Médio no Brasil (CEensino), ligada à Comissão de Educação, fez oito audiências públicas, em que foram ouvidos representantes dos diversos setores interessados, como governo, entidades ligadas à educação, trabalhadores, sociedade e estabelecimentos de ensino.
O resultado foi um relatório com várias propostas de mudanças e aprimoramentos no NEM, inclusive com uma nova distribuição das horas destinadas às disciplinas obrigatórias e da parte diversificada do currículo. A relatora da subcomissão temporária, senadora Professora Dorinha Seabra (União-TO), também será responsável por relatar na Comissão de Educação o projeto já aprovado pela Câmara.
— Nossa ideia é aprovar rapidamente o texto no âmbito do Senado. Um dado importante é que a discussão principal não é a favor ou contra a reforma do ensino médio anterior. Na verdade o ensino médio já tem enormes desafios, e a própria reforma procurou, então, dar essa resposta — disse a senadora, que se reuniu com o ministro da Educação, Camilo Santana, e equipe do MEC para discutir o projeto de lei.
A celeridade, na visão da senadora, é possível porque grande parte do debate já se deu ao longo de 2023, tanto nos trabalhos da subcomissão, que ouviu todos os setores envolvidos, quanto na consulta pública do governo. O resultado, disse Dorinha, não pode perder de vista o principal objetivo, que é melhorar a qualidade do ensino médio no Brasil.
A senadora Teresa Leitão (PT-PE), que foi presidente do colegiado, também ressaltou o peso dos debates da subcomissão na discussão que começa agora no Senado.
— Esse é um tema urgente e sensível, que precisa ser avaliado. É importante ressaltar, inclusive, que foi discutido profundamente na CEensino, criada especialmente com esse objetivo.
Na terça-feira (9), a Comissão de Educação aprovou requerimento para a primeira audiência pública sobre o projeto, em data a ser definida. Devem participar representantes do Ministério da Educação; do Conselho Nacional de Secretários de Educação; do Fórum Nacional de Educação; dos conselhos estaduais; da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE); e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, entre outros.
Pontos de preocupação
Após a aprovação do projeto de lei na Câmara, entidades ligadas à educação se manifestaram a favor de algumas das mudanças, mas ainda demonstram preocupação com outros pontos do texto. Entre os itens comemorados, estão a recomposição da carga horária para a formação básica e a definição dos componentes curriculares que integram as quatro áreas do conhecimento que compõem a Base Nacional Comum Curricular.
Em nota técnica divulgada logo após a aprovação, o movimento Todos pela Educação afirmou que o texto da Câmara é um passo importante para a reestruturação da reforma do ensino médio. De acordo com a entidade, o texto final é fruto de ampla discussão e participação social. Apesar de manter a essência do modelo, o projeto corrige múltiplos problemas da reforma original, avalia o Todos, que pede agilidade na tramitação.
“É fundamental que esse processo se dê de forma célere a partir da tramitação no Senado, de modo a permitir que as redes possam operacionalizar as mudanças a partir de 2025. É preciso que a tramitação seja concluída em algumas poucas semanas, já que, após aprovação da lei, será necessário avançar com ajustes em diversas diretrizes operacionais e normas infralegais, seja no âmbito do Conselho Nacional de Educação, seja nos 27 conselhos estaduais de Educação”, diz a nota.
Além disso, o movimento sugere pontos que podem ser aprimorados pelos senadores. Entre eles, está o estabelecimento de um percentual mínimo para a formação geral básica no caso de expansão da carga horária (jornada integral, por exemplo). O grupo também sugere a obrigatoriedade de que os estados definam metas de expansão de matrículas em tempo integral e medidas para o Enem que não engessem definições técnicas sobre o formato da prova.
Formação técnica
Também após a aprovação do PL na Câmara, o Coletivo em Defesa do Ensino Médio de Qualidade, formado por professores e pesquisadores de todo Brasil, expressou “profunda preocupação” em relação ao futuro do ensino médio no país. Para o coletivo, apesar da vitória que significa a garantia das 2,4 mil horas mínimas para a formação geral básica, não é possível comemorar a versão final do texto aprovado pelos deputados.
Uma das críticas é sobre as regras da formação técnica e profissional. Nesse caso, o texto determina que a formação geral básica será de 1,8 mil horas. Outras 300 horas poderão ser destinadas ao aprofundamento de estudos em disciplinas da Base Nacional Comum Curricular diretamente relacionadas à formação técnica profissional oferecida. As 900 horas restantes ficarão exclusivamente para as disciplinas do curso técnico escolhido pelo aluno quando ofertado pela escola, totalizando assim 3 mil horas.
Essa carga reduzida na formação geral para os cursos técnicos, de acordo com os especialistas que assinam a nota, não garante um ensino de qualidade para todos. Para os professores e pesquisadores, essa parte do texto cria e agrava “uma segmentação interna ao sistema escolar brasileiro — um dualismo educacional que ampliará desigualdades”.
O presidente da Comissão de Educação, senador Flávio Arns (PSB-PR), garantiu que a análise do projeto no colegiado vai dar atenção especial às mudanças propostas nessa modalidade de ensino.
— Precisamos discutir, muito de perto, todo o conjunto, mas, em particular, o ensino técnico e profissionalizante, para que de fato seja um projeto que atenda às necessidades. [Precisamos] olhar bem o que veio da Câmara, ver se está de acordo com os debates que vêm acontecendo aqui no Senado Federal — disse Arns.
Os pesquisadores também atribuem ao projeto falhas como abertura de brechas para a privatização (com a possibilidade de contratação de instituições privadas na oferta de formação técnica e profissional) e para a oferta de ensino à distância na educação básica — admitido “excepcionalmente”, diz a proposta. Outro ponto questionado é a autorização de contratação de profissionais com “notório saber” (não formados) para a docência nos cursos de formação técnica e profissional, o que leva à precarização do trabalho dos professores, avaliam os críticos.
Trabalho como carga horária
Entidades e movimentos da sociedade apontam ainda o risco de incentivo ao trabalho precoce. Isso porque o projeto de lei reconhece como carga horária letiva no ensino médio as aprendizagens, competências e habilidades desenvolvidas em “experiências extraescolares” — como estágio, programas de aprendizagem profissional, trabalho remunerado ou trabalho voluntário supervisionado, “desde que explicitada a relação com o currículo”. O movimento Agenda Infâncias e Adolescências Invisibilizadas, coordenado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação e composto por entidades e movimentos sociais populares, manifestou, em nota, essa preocupação.
“Na prática, o PL 5.230/2023 subverte o sentido de aprendizagem na forma da lei, ao reconhecer as práticas obtidas no ‘trabalho’ por pessoas menores de 16 anos, inclusive de forma voluntária, o que coloca ainda mais riscos de violações de direitos. Ainda, a nova lei incorre em risco de indução e legitimação do trabalho infantil, que se refere ao trabalho realizado por menores de 14 anos, isto porque existem estudantes que chegam ao ensino médio com esta idade ou idade inferior”, diz o texto.
Para as entidades integrantes da agenda, a precarização da educação pública afeta pessoas “com classe social e raça definidos”. Os movimentos pedem que o Senado faça as correções nesses pontos, que, em sua visão, “representam imensos riscos para a segurança e a garantia de direitos de crianças e adolescentes, especialmente aquelas mais vulnerabilizadas e invisibilizadas”.
Fonte: Agência Senado
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