Fortalecer vínculos é decisivo na primeira infância Relação da criança com até seis anos de vida e o cuidador é um dos fatores determinantes na política que busca garantir o desenvolvimento infantil pleno
Garantir para as crianças de 0 a 6 anos o cuidado, o estímulo, o aprendizado e a construção de uma pessoa que na vida adulta terá todos os seus potenciais preservados. Esse é o foco da Política da Primeira Infância (PPI), tão central em um país onde 2,3 milhões de crianças – 10% nessa faixa etária – moram em lares sem a garantia da alimentação mais básica para o seu desenvolvimento e apenas 26% das mais pobres na faixa de 0 a 3 anos – primeiríssima infância – têm o acesso a uma creche, conforme aponta estudo publicado em 2022 sobre os impactos da desigualdade nos primeiros anos de vida.
Para acreditar que a PPI, uma política pública tão central para um desenvolvimento social com qualidade, pode colher os resultados esperados é preciso antes de tudo conscientizar, dialogar, ganhar apoio. E um ponto central nesse processo pode estar exatamente no público que é o foco de programas de visitação: a família da criança.
Chegar aos lares e conversar é um braço importante que vem estruturando a PPI no Brasil e nos estados. No Espírito Santo a experiência do município de Nova Venécia, vencedor da 2ª edição do Prêmio Boas Práticas na Primeira Infância Capixaba (Bpic), revela o sucesso das ações da rede de assistência social que atua no Programa Criança Feliz (PCF).
O PCF, criado em 2016 pelo governo federal, faz acompanhamento e orientações para fortalecer os vínculos criança-cuidador (que podem ser os pais, avós ou outros responsáveis) por meio de visitas às famílias com dados atualizados no Cadastro Único (CadÚnico). As equipes são formadas por profissionais de diversas áreas, como saúde, educação, serviço social e cultura das prefeituras que aderem ao programa.
“O visitador é um agente de orientação que está ali para poder dar um olhar mais crítico e potencializar aquilo que a família tem para usar em benefício do desenvolvimento da criança”, explica Elenair Souza, coordenadora do programa que atende 150 famílias pelo PCF em Nova Venécia. Ela credita o bom desempenho do programa ao caráter intersetorial, com profissionais capacitados para lidar com famílias em extrema vulnerabilidade com sensibilidade.
Além disso, Elenair Souza destaca que a relação visitador-família não pode ser vertical, a equipe não vai para ensinar, mas sim para orientar. Não bastaria apenas o profissional identificar as potencialidades da família: “é trabalhar o desenvolvimento da criança, mas quem tem que fazer a ponte e o trabalho é o cuidador, ele é a pessoa de confiança e de segurança da criança. É ele quem faz a atividade”, complementa Elenair.
Quem também salienta que as abordagens não podem ser verticais é a socióloga e mestra em história Munah Malek, pois mais do que ensinar, o poder público, antes, precisa aprender.
“A parentalidade precisa ser pensada também como um espaço de saber, um espaço de conhecimento, com mães, pais, famílias monoparentais, enfim, pensando nessas famílias diversas. As construções que estão dentro dessas caixas têm uma capacidade teórica, técnica, empírica, muito forte e que podem dizer também”, opina.
Vínculos e vulnerabilidade
Nessa lógica, portanto, desenham-se dois vínculos: o da criança com os adultos que formam sua família, e do adulto que cuida do menor com os profissionais da municipalidade. Segundo a coordenadora Elenair, é tal formato que também vai trabalhar para acabar com outra lógica, a da vulnerabilidade, fazendo a família buscar sua autonomia.
“Atinge o ciclo de vulnerabilidade. Falamos de questões como estudar, fazer um curso quando tem os cursos ofertados pelo Estado. Nós temos mães que estão fazendo EJA [Ensino de Jovens e Adultos] hoje, concluindo aí o ensino médio para poder voltar a estar ativas no mercado de trabalho”, cita. “A partir do momento que o visitador entra numa residência ele leva também informação do que a rede pode fornecer à família, onde buscar um benefício eventual, buscar um tratamento psicológico, buscar educação, até mesmo a questão da habitação”, complementa.
Na linha de frente nas equipes de Nova Venécia, a cuidadora Kamila Ribeiro Francischetto considera que o PCF é focado no vínculo cuidador-criança, enquanto o trabalho de um Centro de Referência de Assistência Social (Cras), por exemplo, olha para a família toda. “Através do programa nós alcançamos muitas famílias que não eram assistidas pela rede”, aponta.
A especialista Munah também frisa a gama de fatores que não podem ser ignorados quando o assunto é o futuro de toda uma geração: “ficamos muito focados em educação e saúde, mas esquecemos que o lazer, a cultura, tudo isso também é essencial. O direito de ir e vir, de frequentar, de estar em comunidade”.
“Entendo o PCF muito mais do que um complemento na proteção social básica. É um elemento que soma muito na rede socioassistencial e, sim, um avanço na rede Suas [Sistema Único de Assistência Social]. Ele difere muito dos demais programas oferecidos porque torna as famílias capazes de alcançar o objetivo de maior desenvolvimento da criança. Nós damos orientação às famílias, mas elas aprendem que a criança vai depender da dedicação e cuidado delas, em seguir as orientações do visitador”, explica Kamila.
Sobre o impacto mais imediato na própria criança, Elenair ressalta que “o Criança Feliz veio para garantir um dos direitos mais básicos que uma criança tem, um direito prioritário, o de brincar. Isso está na Constituição Brasileira”. O programa, reforça, oferece um olhar diferente sobre a importância das brincadeiras para o desenvolvimento da pessoa, pois “é nessa fase da primeiríssima infância que pode adquirir todas as habilidades que vai levar para a vida”.
Avanços
Pela experiência na linha de frente em Nova Venécia, Elenair vai além da própria formalidade do programa, que é essencialmente focado em famílias em situação de vulnerabilidade social. Para ela o “conhecimento a respeito da primeira infância” é tão vasto que poderia ser levado ou reforçado independente da situação social da família.
A servidora conta com alegria alguns casos que carrega como sucesso de seu trabalho, como por exemplo, a criança que estava com dificuldade para falar, e agora a mãe relata ter “uma criança com botão ligado, ele não para, não desliga, começou a falar bem” com alguns meses de orientações.
Outro caso, uma família assistida há pouco mais de um ano, envolve a questão do espectro autista. “Nós temos uma família aqui que as crianças têm autismo, uma de grau médio, outra de grau leve. E nós estamos preparando para a chegada de um bebê e a questão do ‘novo’ para o autista é complexa. Então nós estamos preparando a chegada desse bebê e as atividades têm sido fantásticas, a mãe se emociona com as atividades que o visitador leva para envolver os filhos junto com ela, fazer carícia na barriga, fazer pinturas e preparar cartinhas já para a chegada do neném”, explica.
A cuidadora Kamila relata que existem jovens pais que voltaram a estudar porque passaram a querer aprender a cuidar melhor dos seus filhos, “e a mãe fala que vai ser visitadora do Criança Feliz com a gente, que vai concluir seus estudos e vai fazer os processos seletivos, porque acredita no nosso trabalho e quer fazer parte disso”, conta.
Longo prazo
Falar de Política de Primeira Infância (PPI) é falar de longo prazo, dilema que toca fortemente em nossas maiores características como nação. “A Política de Primeira Infância está intrinsecamente ligada a investimentos de longo prazo. Isso se deve ao fato de que os efeitos do investimento na Primeira Infância não são imediatamente visíveis, mas sim ao longo do tempo, à medida que as crianças crescem e se desenvolvem”, explica Márlei Vieira Fernandes. A advogada esteve à frente da Subsecretaria Estadual de Articulação de Políticas Intersetoriais, a Subapi, em 2022, ano do lançamento do Plano Estadual da Primeira Infância (PEPI), que teve elaboração colaborativa e coletiva.
“A PPI busca criar bases sólidas para o desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e social das crianças, a fim de garantir que elas tenham uma trajetória de vida saudável, produtiva e bem-sucedida”, elucida a ex-subsecretária.
Para avançar em tais pautas, ela considera que a conscientização da sociedade em geral passa por trabalhar o tema na educação pública e também contar com “disseminação de informações claras e evidências científicas que demonstrem os benefícios duradouros” e saber “envolver os setores público, privado, academia e organizações da sociedade civil” em campanhas. “Mostrar como o investimento na Primeira Infância não é apenas uma questão moral, mas também econômica e social, pode ser um argumento convincente para promover políticas de longo prazo”, finaliza.
Normas, prática e simbolismo
O Estado vem institucionalizando, normatizando e simbolizando a Primeira Infância em suas pautas. A legislação federal que trata do tema é de 2016, embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (Ecriad, 1990) e a própria Constituição de 1988 já definam o cuidado com a criança como uma obrigação da família e do Estado.
A socióloga Munah Malek defende que a legislação brasileira de proteção à infância não é nova e é uma das mais sofisticadas. O Ecriad, por exemplo, é “um instrumento que abarca também a primeira infância, que abarca todas as infâncias e precisamos concretizar bastante do que foi dito já nele”.
“Falta na verdade pensarmos a vinculação de maneira a não ser excludente, não ser determinista e não pensar também que quem não teve uma primeira infância, assim: ‘está perdido, está fadado ao fracasso’, e também correr dos modelos assistencialistas muito comuns na década de sessenta até a década de oitenta no Brasil que criminalizam as mães pretas e pobres colocando nelas uma carga que na verdade deveria ser do Estado”, afirma Munah, que é especialista em políticas de gênero, raça e direito à cidade.
No ES, a Política Estadual Integrada pela Primeira Infância é de 2018 e uma das primeiras a serem formalizadas no Brasil. Em 2022 veio o Plano da Primeira Infância, articulado pela Sinapi. Responsável à época pela pasta, Márlei também coordenou o comitê estadual que discutiu o plano para a revisão dos textos. O comitê era formado por 31 instituições públicas e privadas.
“Ao envolver diferentes partes interessadas, como pais, educadores, profissionais de saúde, pesquisadores, organizações não governamentais e outros membros da sociedade civil, por meio de consultas públicas e diálogos, foi possível obter uma visão mais completa e abrangente das questões relacionadas ao desenvolvimento infantil”, lembra a advogada.
A especialista ressalta, ainda, que houve a escuta das crianças nos municípios. Com o projeto Primeira Infância com Arte (Piarte), por meio de desenhos e pinturas, foi possibilitada a comunicação de sentimentos e conhecimentos sobre o convívio familiar e territorial delas.
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