Dos mistérios do cérebro: por que esquecemos as coisas?
Sabemos que o cérebro ainda é um mistério constantemente explorado pela ciência, e ultimamente os estudiosos norte-americanos trouxeram um assunto pertinente à tona: o esquecimento, e o tamanho da importância que ele tem para o nosso cérebro e para a nossa memória. Pode parecer irônico, mas esquecer algumas informações é justamente um ponto muito importante para lembrar de outras.
Acontece que a combinação de inteligência e esquecimento há muito intriga os neurocientistas, pois uma memória ruim foi vista como uma falha do mecanismo do cérebro para armazenar e recuperar informações. No entanto, esse novo artigo proporcionado pela Universidade de Toronto, baseado em uma revisão da pesquisa sobre o assunto, concluiu que o esquecimento é realmente uma parte essencial do aprendizado.
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Um dos autores do artigo em questão, o professor Blake Richards, da Universidade de Toronto, afirma que é importante que o cérebro esqueça detalhes irrelevantes e, em vez disso, concentre-se nas coisas que ajudarão a tomar decisões no mundo real: “Se você está tentando navegar pelo mundo e seu cérebro está constantemente trazendo várias memórias conflitantes, isso dificulta a tomada de uma decisão informada”. A melhor coisa para armazenar memórias é não memorizar absolutamente tudo, observa Richards. Se você está tentando tomar uma decisão, será impossível fazê-lo se seu cérebro estiver sendo constantemente bombardeado com informações inúteis. Em outras palavras, em certos casos, esquecer faz parte do processo de um cérebro ativo e mais inteligente, principalmente na tomada de decisões.
Para entender melhor sobre o assunto que chegou a render artigos da Universidade de Toronto, no Canadá, no laboratório de Frankland e publicados na revista Neuron, apoiado por doações do Conselho de Pesquisa em Ciências Naturais e Engenharia do Canadá (NSERC), um prêmio Google Faculty Research Award 2016 e uma concessão do Instituto Canadense de Pesquisa em Saúde (CIHR) e pelo Instituto Canadense de Pesquisa Avançada (CIFAR) como Associado e Associado Sênior, respectivamente, o Canaltech conversou com alguém da área que pudesse ajudar na compreensão dessa importância do esquecimento. Trata-se do Dr. Luiz Scocca, psiquiatra pelo Hospital das Clínicas da USP e membro da Associação Americana de Psiquiatria (APA).
O processo de esquecimento
Questionado sobre como funciona o processo de esquecimento e memorização do cérebro e como escolhemos o que é importante guardar e o que esquecer, o Dr. Luiz Scocca reflete que, ao falarmos sobre memória, entendemos que há uma produção constante de sinais bioelétricos que acontecem por alterações entre íons dentro e fora das células que produzem tais reações bioquímicas, sendo elas os neurônios, as células essenciais do cérebro. De acordo om o psiquiatra, diferentes áreas cerebrais controlam diferentes funções, e a memória depende de várias áreas por ter vários elementos interligados.
“Se consideramos um evento na vida, dependendo de cada idade, por exemplo, será vivido de diferentes maneiras. Ela depende do fato em si, de lembranças anteriores, dos sentimentos e sensações que envolveram o evento”, argumenta o psiquiatra. Luis ainda diz que são vários tipos de memória, como a sensorial (memória imediata, a percepção do momento pelos órgãos dos sentidos), de curto prazo (recebe essas informações, retêm-se por segundos para serem organizadas, utilizadas ou descartadas) e de longo prazo (ilimitada, que pode armazenar inúmeros acontecimentos e informações com seus sentimentos, e permite recuperação desses e a criação de novos fatos, novas ideias).
O psiquiatra explica que muitos casos de esquecimento da memória de longo prazo resultam da perda de acesso à informação e não da perda da informação propriamente dita. Ou seja, uma memória fraca muitas vezes reflete uma falha de recuperação ao invés de uma falha de armazenamento. “Podemos enfrentar erros de recuperação, quando materiais novos ou antigos entram em disputa, quando não temos pistas de recuperação adequadas, ou possivelmente, em raras situações, devido ao esquecimento motivado”, ressalta.
“Mas é fato que muitas vezes é extremamente difícil escolher o que lembrar e esquecer e isso depende de muitos fatores, tanto habilidades pessoais — atores que lembram suas falas ou pessoas que têm dificuldade de lembrar nomes de outras pessoas; a intensidade e o significado do que aconteceu, como, por exemplo, um evento traumático ou muito bom”, Dr. Luiz ainda observa.
Esquecer é bom?
Mas por que nosso cérebro gasta tanta energia armazenando memórias, mas também gasta tanta energia tentando esquecer as informações? Dr. Luiz nos ajuda a entender isso ressaltando que muita música e poesia diz que é difícil esquecer, especialmente um evento traumático, um amor que se foi, a morte de um ente querido, mas ao mesmo tempo muita coisa é difícil de lembrar, como o caminho para chegar a determinado lugar ou uma informação aprendida em uma aula, por exemplo. “Habilidades pessoais farão o armazenamento da memória com muito menor gasto de energia, ao contrário daquilo que não temos habilidade”, afirma.
De acordo com o psiquiatra, armazenamento é retenção do material codificado que fica armazenado na nossa memória de longo prazo e se mantém adormecido, esperando ser despertado por algum estímulo. O armazenamento de memória dá-se de três maneiras: memória sensorial, memória de curto prazo e memória de longo prazo.
Memória sensorial corresponde ao armazenamento de informações de todo tipo que chegam até os nossos sentidos. Podem ser estímulos visuais, auditivos, tácteis, olfativos, gustativos e proprioceptivos. Uma vez processadas, as informações são transferidas para a memória de curto prazo. O traço de memória sensorial permanecerá no sistema se receber atenção e interpretação. “Quando a informação é julgada importante, nós a movemos da memória sensorial para nossa memória de curto prazo”, explica.
Através da memória de curto prazo, a maioria dos seres humanos pode lidar com aproximadamente 7 informações durante 30 segundos. Podemos estender esse período “ensaiando” a informação, repetindo os pensamentos em nossa mente, o que ajuda a movê-la para a memória de lingo prazo. Sem reiteração, a informação desaparece da memória de curto prazo em segundos. A memória de longo prazo está envolvida quando a informação precisa ser retida por intervalos tão curtos quanto alguns minutos (por exemplo, numa conversa) ou durante uma vida inteira (como memórias de infância). Uma metáfora comum é que a memória de longo prazo é a biblioteca do cérebro. E, como uma biblioteca tradicional, a informação na memória de longo prazo é classificada, arquivada e indexada de várias formas.
Luiz explica que o sistema de catalogação do longo prazo do nosso cérebro é composto por três componentes chave: memória semântica, que cuida de formular nossas ideias, significados e conceitos, memória processual, que ajuda a lembrar como fazer as coisas, e memória episódica, que refere-se à nossa habilidade de resgatar experiências pessoais do nosso passado.
De quanto da nossa vida nos lembramos?
Mas uma questão que vem à tona é: de quanto da nossa vida nós lembramos? No dia que tem 24 horas, por exemplo, quanto desse dia armazenamos? Quanto a isso, Luiz conta que pode-se não lembrar de nada ou de tudo dependendo do estado de consciência, do nível de atenção, do estado do humor, dos tipos de estímulos. “Quando falamos em estudar, por exemplo, há uma curva de esquecimento que é uma hipérbole: começa em 100% e tende a zero com o passar do tempo daquilo que estudamos. Também é interessante notar como certos fatos uma pessoa não esquece nunca e outra já esqueceu no dia seguinte”, reitera o psiquiatra.
Ele ainda opina o seguinte: “De fato é interessante saber que acreditava-se que a perda da memória seria um processo passivo. Embora haja muito por descobrir sobre a biologia do esquecimento, o processo é ativo. Tanto que, no transtorno do estresse pós-traumático, o desafio é que o trauma volta o tempo todo na cabeça”.
Sendo assim, é válido levantar a importância que o esquecimento tem para o funcionamento do cérebro, o quão essencial é fazer essa limpeza das memórias, já que é possível ter uma sobrecarga. Podemos traçar um paralelo entre o cérebro humano e a unidade de armazenamento de um computador. As memórias estariam para os arquivos, assim como as sinapses estariam para o sistema. Para manter o conjunto saudável, é importante sempre efetuar “limpezas”.
“É importante haver uma espécie de equilíbrio entre o que se esquece e o que se reteve. Pessoas com grande memória autobiográfica tendem a tornarem-se obsessivas. Já pessoas que com baixa capacidade nessa área não conseguem aplicar experiências passadas no presente e planejar o futuro, embora sejam muito boas em trabalhos que requerem pensamentos abstratos”, indica o psiquiatra. “Também é verdade que esse processo de esquecer é saudável para o cérebro, pois tira coisas já desnecessárias do caminho, evita essa sobrecarga, esse cansaço que certas lembranças deixam”, conclui.
Fonte: Independent, University of Toronto
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