Infância: hábito de ler é desafio no país de não leitores
Marina Ferreira, 7 anos, lembra até hoje do seu livro da joaninha (“Livro Sonoro com Rimas Joaninha”) com o qual aprendeu os números e também do livrinho “Três Porquinhos”, ambos recebidos quando tinha apenas 2 anos. O mais marcante na vida da pequena e assídua leitora, entretanto, foi o Livro dos Porquês. “Eu aprendi um monte de coisas sobre corpo humano e artes com ele”, conta.
De lá para cá, ela já leu muitos outros títulos. Estimulada pelos pais Paula e Ricardo, leitores ávidos, e também pela escola, hoje Marina está mergulhada nas histórias do bruxo Harry Potter. “Eu já li quatro livros do Harry Potter e estou ansiosa para começar o quinto”, revela.
A realidade de Marina ainda é exceção em um país de 48% de não leitores. O índice considera brasileiros a partir de 5 anos que não leram nenhum livro ou parte dele nos últimos três meses anteriores à pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 5 (para download), realizada pelo Instituto Pró-Livro no último trimestre de 2019 e divulgada em 2020. A população estimada com 5 anos ou mais era de 193 milhões.
No levantamento nacional, abrangendo todas as capitais e 208 municípios, foram realizadas mais de 8 mil entrevistas domiciliares. O estudo mostrou que o Brasil perdeu mais de 4,6 mil leitores em comparação com a pesquisa anterior (2015). A série histórica é realizada desde 2008.
A triste cifra convida para reflexão especialmente neste Abril Laranja, mês de valorização da leitura no Estado, instituído na Lei 11.212/2020. Nesta semana, também se celebrou o Dia Nacional do Livro Infantil (18 de abril). Especialistas apontam que a formação de leitores ainda na infância é uma das estratégias para alterar esse quadro.
Hábito de leitura
A escritora Lilian Menenguci, autora de livros infantis e doutora em educação, destaca a importância da família na formação do hábito da leitura:
“Em nosso processo cultural, logo que nasce uma criança na família é muito comum que – entre chupetas, fraldas e mamadeiras – lembremo-nos de presenteá-la, sobretudo, com brinquedos. Os livros, frequentemente, não aparecem entre os presentes. Então, a família tem um papel protagônico na formação do leitor do presente e do futuro: levar os livros à criança. Além de presentear a criança com livros literários é fundamental que as famílias possam ler para e com as crianças pequenas”, recomenda.
O momento ideal para apresentação do livro à criança é o mais cedo possível, segundo Ivana Esteves, pós-doutora em educação, com foco de pesquisa na literatura infantil e estratégias de leitura:
“O hábito da leitura deve ser ensinado à criança desde o berço, incluindo esse procedimento no imaginário das famílias, como processo do cuidar, educar e de formação”, defende a pesquisadora.
Prazer de ler
Competindo com a televisão, celulares e tablets, os livros têm perdido espaço na rotina das crianças. Nesse contexto, ensinar a ler pelo simples prazer de ler – e não por obrigação – deve ser a missão de pais e professores. É o que pontua Ivana:
“Não se trata de ler, tendo o texto como pretexto para ensinar ortografia ou outro projeto escolar, mas de ensinar a arte da apreciação leitora. O tempo ocioso da criança deveria ser também ocupado pela leitura, que deve desde cedo ser ensinada como diversão e fruição e não como fardo ou castigo, como as famílias lhes fazem perceber. Muitos pais e outros educadores em casa dão a leitura como castigo para a criança. Como então desenvolver o hábito prazeroso de leitura?”, indaga Ivana.
A pós-doutora em Educação Maria Amélia Dalvi, elenca as atitudes que as famílias podem ter para fomentar a inserção da leitura por prazer na vida das crianças:
“A família, se puder – e faço essa ressalva porque nem todas as famílias podem – contribui ao valorizar o interesse das crianças pelo livro, pela leitura, pela escola, pelo estudo; dar exemplo; promover trocas e empréstimos de materiais de leitura entre crianças da mesma família, rua, escola, comunidade; presentear com livros e incentivando a criança a presentear os amiguinhos com livros”, ensina Maria Amélia.
No rol das atividades recomendadas às famílias também estão “reservar um cantinho na casa para guardar os materiais de leitura e visitar bibliotecas públicas, livrarias e sebos – além de frequentar atividades do circuito literário (lançamentos, contações de história, sessões de autógrafo etc)”, aponta a professora da Ufes.
A pesquisadora Ivana Esteves lamenta que a escola seja hoje o palco principal onde se desenrola o contato da criança com os livros. “Não deveria ser assim, e não era assim. As famílias introduziam a leitura literária, tendo a criança, primeiro como ouvinte, por meio das contações de histórias e, depois mediante o estímulo ao aprendizado da leitura”, pondera.
Na pesquisa do Instituto Pró-Livro, foi perguntado quem eram os incentivadores de leitura para os entrevistados. Entre os leitores, 15% citam os professores como os principais motivadores. As mães (ou responsável mulher) aparecem em segundo lugar, com 13% dos votos; e o pai (ou responsável homem) em terceiro, com 6%. Para 13%, o incentivo veio de outros parentes, líderes religiosos e outros. Mais da metade dos leitores (52%) responderam que não gostam de ler ou não foram influenciados por ninguém ou alguém em especial.
A construção do hábito na infância e o impacto dessa prática na vida adulta também foram alvo de pesquisa do Instituto Pró-Livro. O estudo de 2019 aponta que, entre os leitores, 49% dos brasileiros disseram adquirir o hábito ao ver os pais lendo sempre ou às vezes. No caso dos não leitores, o número se inverte: 70% revelaram não ter presenciado o ato em casa.
Quanto ao ato de ganhar livros, 53% dos leitores afirmaram ser presenteados com livros sempre ou algumas vezes. Já entre os não leitores, 76% contam que nunca ganharam esse tipo de presente.
Estratégias de leitura
Crianças em idade pré-escolar (a partir de 2 anos) podem e devem ser estimuladas a ter contato com livros. Segundo Maria Amélia, nessa fase a experiência sensorial e afetiva é “decisiva”.
A professora sugere que a família conte histórias em momentos de cuidado (banho, antes do sono, etc) e sente com as crianças no colo para folhear, manusear e ler livros ilustrados e com pouco texto. Outra dica é dramatizar histórias e ensinar trovinhas e poemas curtos de memória.
Já para a turminha em fase de alfabetização, o ideal é criar uma rotina de ler juntos (com ajuda) e depois, de forma autônoma, todos os dias, mesmo que seja por um período curto. Maria Amélia destaca que o tempo pode ser, pouco a pouco, ampliado (5, 10, 15, 20, 30, 45 minutos…).
Para auxiliar a criança a elaborar e registrar o que leu, recomenda-se que, após a leitura, seja realizada alguma atividade de expressão artística como pintura, desenho e encenação. “Uma coisa bacana é expor pela casa (na geladeira, no corredor, na porta do quarto, em um varal interno) esses registros e ir trocando-os e atualizando-os de tempos em tempos”, indica Maria Amélia.
Com crianças maiores, a especialista diz que vale estabelecer metas de leitura (em página ou em tempo) diárias ou semanais, com um quadro de acompanhamento que seja visível para a criança e para toda a família.
Maria Amélia ressalta, ainda, que as pessoas tendem a achar que as crianças já nascem gostando ou não gostando de ler, mas que essa ideia é um erro. “Tornar-se um leitor é algo cultural, e não biológico”, explica.
Vantagens da leitura
A importância da leitura para as crianças vai além do aprendizado escolar, sendo decisiva para a construção do senso crítico e o desenvolvimento emocional das crianças. É o que explica a doutora Lilian Menenguci:
“A leitura de um livro literário pode nos oferecer outras leituras: leituras de outros modos de ser, de fazer, de pensar, de perceber, de sentir, de elaborar, de conhecer, de viver no mundo e também de reinventá-lo. Além disso, ela pode ser uma espécie de ponte no processo de aprendizagem e desenvolvimento da criança, inclusive sobre si mesma. A leitura literária contribui para que a criança produza sentidos, fortaleça vínculos afetivos e amplie o seu repertório (linguístico, social e cultural)”, afirma a escritora.
Ivana vê as mesmas vantagens e ressalta que o impacto da criação do hábito da leitura na infância será sentido por toda a vida. “A aquisição de competências como a da leitura literária, será determinante ao longo de sua vida, formando crianças criativas, críticas, com capacidade argumentativa, proativas e empoderadas”, reforça.
Propostas
O cenário para a formação do leitor no Brasil não é dos mais favoráveis e traz desde a falta de acesso a livros até a ausência de quem possa orientar as crianças. Maria Amélia, entretanto, defende que é possível driblar os obstáculos e destaca o papel do estado:
“Sugiro uma série de medidas articuladas, como a criação de programas de permanência das crianças nas escolas; oferecimento de cursos longos sobre formação leitora de licenças para capacitação para os profissionais da escola, além de investimento em bibliotecas públicas físicas e digitais com infraestrutura adequada, com acessibilidade, acervos restaurados e renovados.”
Nas comunidades carentes, Maria Amélia aponta a importância da criação de pontos de leitura, reformando espaços existentes e remunerando pessoas da própria comunidade que possam se tornar dinamizadores de leitura.
“Distribuir kits com obras selecionadas para que as crianças tenham pequenos acervos pessoais também é interessante. Faz muita diferença ter um exemplar para chamar de seu”, destaca a especialista.
A pesquisadora em literatura e ensino chama a atenção ainda para a relevância de editais de publicação de obras:
“Eventualmente, são lançados editais de aquisição de obras de autores locais, mas esta é uma iniciativa pontual e que depende muito da conjuntura momentânea de forças, o que é péssimo em se pensando em política pública de Estado. A aquisição de obras desacompanhada de movimentos consistentes de circulação do livro e de dinamização da leitura é pouco efetivo”, pontua Maria Amélia. Para ela, uma saída seria a realização de mais feiras e festivais do livro e de literatura no estado.
Mediadores da leitura
Há no Brasil uma expectativa infundada de que para formar leitores mirins é preciso apenas entregar-lhes um livro. É o que observa Maria Amélia:
“Muitas crianças são abandonadas diante dos livros. Nesse sentido, para além da qualidade do material, do tempo livre e das condições materiais, é fundamental registrar a importância de que as crianças leitoras sejam orientadas por pessoas mais experientes, que tenham formação específica nos campos científico e artístico que possam servir de guias ou auxiliares no processo. Porque não basta entregar um livro ou um texto na mão das crianças e esperar que elas por mágica se interessem ou se tornem leitoras habituais.”
De maneira similar pensa Ivana Esteves, para quem um dos caminhos para superar os obstáculos é investir na formação dos educadores: “(…) os professores, nas mais das vezes, não são apreciadores de leitura literária, não aprenderam a gostar de ler. E isso pode ser-lhes transmitido por meio de uma formação, por exemplo, em estratégias de leitura com livros infantis”, sugere.
Ivana destaca ainda que essa demanda consta na Base Nacional Curricular Comum (BNCC) para a educação básica e é transformador quando esse despertar acontece:
“Eu tenho tido experiências fantásticas com orientandos e orientandas docentes, em desdobramentos dessa aprendizagem em sala de aula. Os mediadores de leitura estão contribuindo para o desenvolvimento de um hábito que lhes possibilitará alcançar um desenvolvimento ímpar, visto que dos 0 aos 6 anos é quando as crianças estão com seus circuitos cerebrais altamente potencializados”, explica.
Livros gratuitos para download
- Biblioteca digital do Portal Domínio Público
- Litela Mágica – livros infantis de autores capixabas na web
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